Personalie

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010


CAP. 13 - Frederic Pierre

Corri para as gavetas da mesa com a foto nas mãos.

- Letícia, o que houve? – Perguntou o anjo.

- Preciso de uma tesoura ou qualquer coisa que destrua isso! – Respondi sem fôlego enquanto tirava uma tesoura de dentro da gaveta com as mãos trêmulas. – Achei!

- Isso o que? – Perguntou ele mais uma vez, agora se aproximando para tentar ver a foto. – Letícia, me deixe ver a foto.

Eu hesitei com a tesoura na mão, respirei duas vezes, então uma lágrima escorreu pelo meu rosto.

- Por favor, não me impeça de fazer isso. – Pedi enquanto me preparava para pinicar a foto.

O anjo se aproximou novamente, até que pôde ver a foto.

- Espera um minuto... – Sussurrou ele enquanto analisava a velha foto de colégio em preto e branco.

Na foto, um grupo de alunos. Apenas um rosto eu conhecia...

Conhecia há pouco tempo, mas já se tornara importante para mim.

O meu Anjo estava naquela foto, eu não tinha certeza, não podia ver a cor dos seus olhos por a foto ser em preto e branco... mas o cabelo cheio e cacheado, as feições do rosto... tudo parecia ser igual, o mesmo.

- Letícia, não posso deixar você fazer isso. – Disse ele com calma enquanto olhava para a tesoura e a foto na minha mão.

Eu tremia e soluçava, aquilo era a única coisa que faltava para que ele me deixasse... as missões estariam cumpridas, e ele não teria mais nada a fazer aqui, não ficaria mais comigo, e eu nunca mais voltaria a ver os seus olhos de violeta novamente...

As lágrimas não paravam de escorrer pelo meu rosto.

- P-por favor... não... não vá. – Pedi entre soluços.

Ele pareceu engolir um nó na garganta antes de responder.

- Eu... não posso impedir, é assim que tem que ser, Letícia. E também... eu quero saber quem eu fui.

Agora o problema não era comigo, nem com nós.

Era com ele também. E eu estava ignorando o problema dele.

Aos poucos deixei a tesoura escorregar pelos meus dedos, até que ela caiu no chão.

Cada palavra dele chegava como flecha em mim, estava claro que ele preferia saber do seu passado ao ficar aqui comigo... talvez eu fosse apenas um trabalho para ele, e não uma amiga.

- Você não quer mais ficar aqui – minha voz foi apenas um sussurro. A frase não soou como pergunta, era uma afirmação.

- Não! Não é isso! Letícia, eu quero muito ficar aqui com você, mas isso não é possível, nós dois sempre soubemos que um dia eu teria que partir e... esse dia está chegando.

Eu balancei a cabeça espantando as idéias negativas. Eu estava sendo egoísta, estava pensando apenas na minha felicidade.

Mas e a dele?

Eu não havia pensado nisso...

- Você tem razão, tem o direito de ser feliz... mesmo que isso nos separe – Eu disse fechando os olhos na tentativa de conter as lágrimas. – para sempre.

- A minha felicidade é a sua felicidade, mas eu preciso saber quem eu fui, preciso ser alguém.

- Você é alguém, é o meu anjo e... eu quero que seja sempre assim.

Eu olhei fixamente para os seus olhos de violeta, me perdendo neles.

Ele elevou a mão até a altura do meu cabelo, mas abaixou-a novamente, atravessando o meu ombro. Nada senti, nem um ventinho sequer... apenas observei os seus gestos.

Os seus olhos ficaram tristes novamente.

TOC, TOC, TOC.

Alguém bateu na porta, e sem saber quebrou uma quase despedida.

- Letícia? – Perguntou a minha avó na porta.

- O-Oi. – Respondi enquanto limpava os olhos.

- Está chorando, querida?

- Não, é que... caiu poeira nos meus olhos. Ah, aconteceu um acidente com o seu livro...

Ela observou os papéis no chão, depois seus olhos se voltaram para a foto na minha mão.

- Oh, eu tenho outros exemplares... mas esse era especial porq... deixa pra lá, vamos almoçar!

Ela veio até mim e pegou a foto das minha mãos. Minha avó tentava esconder o rosto, eu percebia isso, já que ela estava evitando me olhar.

- Vó! – Chamei quando ela ia saindo com a foto na mão.

Essa seria a oportunidade perfeita, eu não precisaria me livrar da foto e me sentir culpada depois. Não teria culpa alguma com a desculpa de que a minha avó tomara a foto das minhas mãos e a levara para não sei onde. Mas, eu sabia que estaria jogando no lixo a única chance de completa felicidade do meu anjo. E depois de tanto tempo me entendendo e me apoiando, ele merecia algo em troca.

E eu sabia o quanto isso era importante para ele... ele mesmo falara isso. Então, não pensei muito ao preferir a felicidade dele.

- Sim, querida? – Virou-se ela para mim, me olhando pela primeira vez desde que pegara a foto das minhas mãos.

- Essa foto...

Ela olhou a foto.

- Sim...?

- O garoto... os dos olhos de violeta.

Sua testa se dobrou formando mais rugas – junto com as que apareceram no decorrer do tempo -, agora seu rosto tinha uma expressão confusa.

- Como sabe do garoto dos olhos de violeta se a foto é em preto e branco?

Fiquei sem reação. Tentei pensar rápido em uma desculpa para a minha ‘premunição’. Não dava pra dizer: “Ah, vó, sabe... é que o meu anjo da guarda e esse menino aí são – parecem ser - a mesma pessoa, e o meu anjo tem olhos de violeta!”.

A única saída que achei foi mudar de assunto.

- O g-garoto mais alto é... bonito. Quem era? – Perguntei enquanto tomava a foto da mão dela novamente.

Suas mãos enrugadas tomaram a foto de minhas mãos mais uma vez, com cuidado, seu olhar era carinhoso em direção a foto.

- É uma longa história...

Eu dei de ombros e me dirigi até a cadeira confortável atrás da mesa.

- Tenho o dia todo. – Disse me recostando na cadeira.

Enquanto minha avó olhava a foto, tive a impressão de que toda uma história passava pela sua mente, refrescando lembranças passadas.

Aproveitei o silêncio e a falta de atenção de vovó para observar a expressão do Anjo.

Ele estava paralisado e me olhava quase confuso.

Sorri torto para ele, mas ele não sorriu de volta. Parecia surpreso demais para isso... mesmo assim, seu rosto não era completamente feliz. Talvez pelo susto.

Depois de um tempo de silêncio completo, resolvi cutucar vovó.

- Vó?

- Oi, querida. – Respondeu ela depois de um tempo, ainda sem tirar os olhos da foto.

- Então...?

Só aí ela olhou para mim novamente, tive a impressão de ter visto uma lágrima presa atrás de seus óculos, porém, finge que não a vi.

- Depois do almoço, como eu disse... é uma longa história.

Ela dirigiu-se com seus passos lentos até a gaveta, onde guardou a foto novamente.

- Prometo que lhe contarei detalhes. – Disse ela depois que trancar a gaveta e jogar a chave dentro do porta-lápis. – Vamos comer, tem lasanha para você.

Minha barriga roncou, eu estava com fome.

Mais do que faminta, eu estava triste.

Talvez, eu só teria apenas um horário de almoço podendo ver o meu anjo... Podendo ver os seus olhos... Seu sorriso eu não via mais, ele não o exibia.

Mas eu pensava no lado bom, como Pollyanna: Ele teria sua felicidade, e isso valia o meu sacrifício.

Porém, só em pensar que nunca mais o veria novamente, meu coração doía. E com tanta dor, nem o cheirinho gostoso da lasanha de queijo enorme e suculenta em cima da mesa conseguiu me distrair.

De tanto nervoso a fome foi embora.

Minha avó também mal tocou na comida. O clima tenso tomou a mesa.

O anjo estava silencioso e imóvel ao meu lado. Ele parecia agoniado, mas ao mesmo tempo ansioso.

Afastei o prato, não ia conseguir comer mesmo...

- Vó...

- Sim, querida? – respondeu enquanto pegava um guardanapo.

- O garoto da foto...

Ela pensou por um minuto, então, sorriu levemente e me olhou.

- Aquele garoto era Frederic Pierre. – Seus olhos flutuavam em um lugar desconhecido, ela não estava ali por completa... apenas o corpo, a sua mente parecia mergulhar em lembranças.

Frederic...

Frederic Pierre.

Seria ele? Seria ele o meu Anjo?

Frederic?

Só então me lembrei do quadro no quarto.

- Frederic? É essa a assinatura do quadro no quarto de cima, “Para Nina. Com amor, Frederic.” – Fiz uma pausa para me lembrar do quadro detalhadamente – Quem é Nina?

Minha avó demorou um pouco para responder. Só depois de um longo minuto ela sussurrou a resposta.

- Nina sou eu. – Mais uma pausa. – Era assim que ele me chamava.

Ela se levantou.

- Onde vai? – Perguntei seguindo-a.

- Venha comigo, vou lhe mostrar umas coisas.

Obedeci. Atrás de mim o Anjo, a mesma expressão confusa, agora misturada com a agonia.

Então a presenteada Nina do quadro era a minha avó... E se tudo se encachace certo, o presenteador seria o meu Anjo. O Frederic.

Mas como eles podiam se conhecer? Por que ele dera esse quadro a ela? Por que ele usou a palavra... amor?

A minha mente afundava em dúvidas e milhões de perguntas como essas.

Segui minha avó até que voltamos a mine-biblioteca.

- Está vendo aquela caixa ali em cima? – Perguntou-me ela, apontando para uma caixa salmão clara no topo da prateleira.

Fiz que sim.

- Pode trazê-la para baixo?

Fiz que sim mais uma vez. Arrastei a cadeira até a estante, sorte que eu estava de meias, caso contrário teria sujado o assento.

Me estiquei até que alcancei a caixa.

Era meio pesada, então, desequilibrei levemente.

- Opa! – Exclamei quando consegui colocá-la sobre a mesa.

A caixa que era salmão claro nos lados. Estava cinza de poeira na tampa e embaixo.

Vovó bateu a mão levemente sobre o pó, limpando – ou quase – a caixa.

Suspirou.

- O que tem aí? – Perguntei.

- Lembranças. Apenas... lembranças... – Respondeu ela sem me fitar, o alvo do seu olhar era a caixa, agora sem poeira na tampa.

Mais uma assopradinha na tampa da caixa. Espirrei com o pó.

- Desculpe, faz tempo que não abro essa caixa. – Disse vovó.

Eu ia dizer: “Sem problema”, mas outro espirro cortou a minha fala.

Quando acabei com a crise de espirros, voltei a perguntar:

- Lembranças... quais?

Mais um suspiro de vovó.

Seus dedos tocaram a tampa da caixa, ela ia abri-la.

Fitei meus olhos na caixa, imaginando mil coisas que poderiam estar lá dentro.

Olhei para o Anjo pelo canto do olho.

Ele continuava parado no mesmo lugar. Pensativo. Talvez, ainda surpreso.

A escuridão de dentro da caixa ia desaparecendo à medida que vovó a abria lentamente. Até que tudo ficou claro de vez.

Eu não entendia, até o momento, o que tantos jornais e até um diário faziam ali.

Com cuidado para não espalhar mais poeira, vovó tirou o primeiro jornal de dentro.

- Frederic Pierre, 18 anos, filho de português com uma brasileira. Intercambista do Brasil. Assassinado nesse último sábado, 17/07/1945, ao tentar salvar a colega de faculdade – Ela fez uma pausa na leitura para engolir algo que estava preso na garganta. Um nó? Não sei... Só sei que a medida que ela ia lendo eu ia derramando lágrimas, 1945, seria esse o ano da morte do meu anjo? Para salvar uma colega de faculdade? Quem era essa colega? Quem? – Anita Xavier...

Anita Xavier.

ANITA XAVIER!

ANITA XAVIER... MINHA AVÓ!?

Depois de sussurrar o próprio nome, vovó não conteve as lágrimas.

Ela fez mais uma pausa, agora menor, então, continuou a leitura:

- A garota de 17 anos, que também é brasileira, disse à polícia que foi abordada no meio da noite por quatro homens ao voltar da casa de uma amiga. Eles obrigaram que entregasse sua bolsa, ela não reagiu. Segundo ela, um dos homens tirou uma arma (que até então estava escondida pela camisa longa) da lateral da calça e apontou-a em sua direção engatilhada. Por sorte, ou azar, o colega de Letras da garota passava de moto no momento do assalto, o garoto conseguiu atingir o homem com a arma, atropelando-o, mas outro integrante da gangue sacou outra arma e... – Pausa acompanhada de lágrima. Suspiro - disparou em sua direção. Em meio a confusão, a garota conseguiu fugir. Ela correu cerca de cinco quarteirões até chegar a um telefone público e chamar a polícia. Ao chegar ao local do crime, a polícia encontrou o garoto sangrando, sua moto fora roubada também. Frederic – Mais lágrimas. Mais uma pausa. Agora, um soluço - morreu a caminho do hospital. Anita, que era próxima ao garoto, ainda encontra-se em estado de choque. – A voz dela falhou na palavra “morreu”. – A família do garoto, que mora no Brasil, já foi avisada sobre o acontecimento, o corpo será velado no país de origem de Frederic. De Lisboa, Catarine Moscovo.

Depois de terminar de ler a notícia, vovó colocou o jornal dentro da caixa novamente – pude ver que o Jornal não era do Brasil. Com o braço livre, ela apoiou-se na mesa. Por um momento achei que ela estivesse passando mal, mas depois vi que era apenas ela tentando lutar contra as lágrimas.

As coisas estavam ficando mais claras...

O meu desespero aumentava a cada vez que eu olhava para aquela caixa. Parecia que tudo que precisava para o meu anjo – ou Frederic – ir embora era isso.

Mas eu ainda tinha uma pontinha de esperança de tudo não passar de uma simples coincidência... Só que os fatos apontavam para o “SIM” e independente do fim disso tudo, eu teria que aceitar.

Depois de um longo tempo em silêncio, resolvi falar.

- Ele era... especial, não é? – Perguntei.

Depois de um longo suspiro ela respondeu:

- Sim. Muito.

Ela voltou a vasculhar a caixa com o braço não engessado.

Dessa vez ela tirou uma agenda de dentro.

- Fred era um garoto cheio de talentos... Inteligente, bonito... – começou ela enquanto seus olhos flutuavam em um lugar desconhecido, distante. – Adorava escrever! Se estivesse... vivo, seria um grande poeta.

Poeta?

Lembrei das vezes em que do nada ele recitava pequenos versos, e do dia em que ele admitiu sentir uma intimidade com as palavras:

“- Acabei de descobri uma coisa sobre sua vida, você era poeta. – Eu disse para quebrar o clima triste.

Ele riu.

- É verdade, eu sinto que tenho uma intimidade com as palavras, mas não sei explicar direito... É como se eu estivesse descobrindo de uma hora para outra – disse ele se afastando de mim com uma expressão pensativa.”

Seria essa intimidade uma lembrança da sua vida?

Frederic... o meu anjo?

Engoli o nó na garganta e mais lágrimas escaparam de mim depois da lembrança... tudo estava se encaixando perfeitamente. Perfeitamente demais, até.

- Essa agenda era dele. – Suspirou vovó ao pegá-la.

O diário estava empoeirado, mas dava pra ver a sua cor marrom-chocolate.

- Posso ver? – Perguntei erguendo uma mão trêmula.

- Claro.

Soprei a poeira antes de abrir o diário. A capa aveludada era macia, provavelmente teria um cheiro bom se estivesse sendo conservada em um lugar mais fresco, ao invés de mofar em uma caixa abafada.

Ignorei o cheiro de mofo e poeira e abri o diário lentamente.

Dentro, ele não estava empoeirada. As folhas eram de um tom amarelado e, logo na primeira folha, tinha uma assinatura grande em uma letra bem desenhada. “Diário de Fred. Pierre” .

Eu sei o quanto é monstruoso ler o diário de alguém sem permissão. Mas o dono desse não estava mais entre nós... não especificamente, talvez.

Passei mais algumas páginas até chegar uma data antes da morte do dono do diário.

“16/07/1945 – sábado. Por Fred. Pierre.

Hoje Nina estava radiante! Nos encontramos numa praça daqui de Lisboa e eu contei tudo que sentia a ela. Ficamos nos olhando por tanto tempo que achei que finalmente fosse beijá-la, mas de repente começou a chover e tivemos que voltar para a república. Nina não disse nada, parecia chocada. Acho que ela não me ama tanto quanto eu a amo – se é que ela me ama, o que descarto quase que totalmente. Estou com um pressentimento ruim, um aperto no coração, como se algo muito ruim estivesse prestes a acontecer... Não sei como contar isso a Nina, acho que ela irá me julgar como tolo. Então, apenas irei segui-la amanhã, para ter certeza que nada de mal lhe ocorrerá. Por enquanto darei tempo ao tempo, terei que obedecer a minha teoria de que o tempo cura tudo e pensar que logo, logo o choque das palavras que eu disse a ela hoje passará, e que em pouco tempo voltaremos a nossa amizade normalmente, ou, quem sabe, algo mais forte... mais intenso. Ai, ai, aposto que sonharei com ela novamente hoje. Será que um dia tudo será real? Hmmm... não sei, apenas torço por isso.

[...]

Anotações do dia: 1 – Terminar resumo sobre Napoleão Bonaparte;

2 – Terminar carta para Nina;

3 – Colocar gasolina na moto; 4 – Entregar o quadro a Nina.

Agradeço a Deus por mais um dia e pelo prazer de poder escrever o meu ponto continuação de hoje; – pois, sempre depois de um dia vem outro, e mesmo depois da morte as palavras não se apagam, apenas uma nova história começa sem nunca ter ponto final – Ponto continuação.”

Passei mais uma página, mas não tinha nada escrito.

O ponto continuação não era um ponto continuação. Ele não teve a chance de escrever mais ali, o ponto continuação se transformara em um ponto final. Mas como o mesmo disse em seu diário... sempre depois de um dia vem outro, e mesmo depois da morte as palavras não se apagam, apenas uma nova história começa sem nunca ter ponto final. Então, esse foi o ponto final apenas de sua vida. Pelo que parecia, Frederic teria mais uma longa jornada como o... meu anjo da guarda. Morrera para salvar uma vida, vida da qual julgava ser mais importante do que a própria. A vida de minha própria avó.

De repente o mundo pareceu ser pequeno demais, e tudo se encaixara como deveria. Tive uma sensação de dever cumprido que eu não esperava.

Eu nem mesmo queria essa sensação.

Não queria ver as missões cumpridas.

Não queria ver o meu anjo, Frederic, ir embora.

Engoli um nó maior em minha garganta, eu sentia rio de lágrimas escaparem dos meus olhos.

- Querida? – perguntou vovó com uma ruga de espanto entre os olhos, com certeza ela ficara surpresa com a minha reação diante da história.

- Ele... amava você. – Sussurrei fechando o diário.

Ela pegou-o de minhas mãos e o colocou na caixa novamente.

- Sim. – Concordou ela em uma voz que mais parecia apenas um sopro.

- Mas ele não tinha certeza sobre o que você sentia por ele. - Comentei de acordo com o que li no diário.

Ela riu de leve.

- Ele não teve a chance de escrever a sua certeza nesse diário, mas sei que ele se foi sabendo que eu o amo.

Estremeci com a intensidade do “amo” em sua voz, e me surpreendi com o tempo usado na palavra – o presente.

- Mas... e vovô? Você não o amou quando ele estava vivo?

- Claro, Letícia! E continuo amando-o. Penso que a morte é apenas uma passagem – disse ela enquanto dava uma volta na mesa até a estante de livros – Acredito nas palavras desse livro.

Ela voltou carregando uma bíblia, que colocou cuidadosamente sobre a mesa, ao lado da caixa.

- Frederic foi o melhor amigo que já tive, nunca me esquecerei do que ele fez por mim. Deu-me a coisa mais preciosa que podia... a vida. Também continuo amando-o.

Senti rugas confusas no meu rosto.

- Ué, mas você não ama o vovô?

Ela riu mais intensamente agora.

- Sim. Depois do seu avô o meu amor por Fred cicatrizou, mas mesmo assim continua aqui. – Ela elevou a mão sobre o peito esquerdo.

Uma lágrima manchou os seus óculos, e dessa vez, ela foi obrigada a tirá-los e limpá-los.

- Fred foi a melhor parte da minha adolescência. Não teria ficado sequer uma semana em Lisboa se não fosse por ele... eu não tinha muitos amigos lá, só ele e a Louis.

- Louis? – Perguntei.

Como resposta, ela voltou a mexer na caixa.

Tirou outra foto de dentro e me entregou.

Nessa, três adolescentes. Em preto e branco. Observei os rostos do garoto e das duas garotas ao seu lado com cuidado.

A garota da direita parecia ter um cabelo mais claro, algo como louro.

O garoto, o único da foto, era o mesmo da outra, o mesmo que causara toda essa polêmica... Frederic Pierre, ou, pelo que tudo indicava, o meu anjo.

Estremeci.

A outra garota... Oh, a outra garota!

Nunca achei ninguém parecida comigo, mas ela... As sobrancelhas finas, o desenho do rosto, os traços... a única coisa que parecia não ser idêntica era o cabelo, o dela, mais cacheado.

- Oh meu Deus! Quem é essa? – Perguntei.

Vovó sorriu.

- Essa sou eu, há uns bons tempos atrás... você está bem parecida, não acha?

Eu sorri, por incrível que pareça.

- Louis é a garota da direita. – Informou vovó.

Os três jovens pareciam bem amigos, isso porque estavam bem próximos, o que deixava claro que eram bem unidos. Porém, Frederic segurava apenas a mão de vovó, enquanto Louis segurava um caderno (ou fichário?) com as duas mãos.

- Eu estava voltando da casa de Louis quando aconteceu... Ele estava me seguindo o dia todo, li no diário dele sobre o pressentimento ruim. Era tarde, muito tarde, como disse o jornal.

Enquanto vovó recontava a história do jornal, olhei ao redor a procura do anjo.

Não achei.

De imediato, me descontrolei e senti meus pulmões balançarem em um ritmo colérico e o meu coração se espremer entre as costelas até que... Consegui encontrá-lo. Suspirei de alívio ao vê-lo do meu lado esquerdo, com uma expressão concentrada, assim como minha avó, ele não estava ali. Apenas o corpo... Ou nem isso, talvez, só a imagem, a mente voava em constelações desconhecidas.

Imaginei onde a mente de vovó estava enquanto ela contava a história. Claro, essa era fácil, ela estava em Lisboa, em meados dos anos 40, com Frederic e Louis... até que a vida de Frederic Pierre foi interrompida para salvar a de alguém que ele considerava mais importante, a de minha avó.

A mente do anjo...? Ah! Devia estar flutuando na história, forçando a memória para se lembrar da noite em que levara um tiro e morrera por uma garota, mas não uma simples garota... o amor de sua vida.

Parei com os meus pensamentos e voltei a minha atenção a história, ela a contava com mais detalhes.

-... tinha ido estudar gramática com Louis, ficou tarde, mas eu tinha que voltar a república. Eu estava quase chegando, quando um grupo de rapazes me abordaram, um deles me jogou contra a parede e tomou a minha bolsa, eu nem sequer pensei em reagir... e quando ele sacou aquela arma... ah, minha vida toda passou em frente aos meus olhos, que mesmo abertos, pareciam cegos demais. O filme da minha vida foi interrompido por um barulho alto de motor e uma luz ofuscante. De início não percebi que era a BSA M23 Empire Star de Frederic, ah... quando vi que era ele, me enchi de esperança e até sorri. Ele atropelou o homem com a arma e logo depois sua moto derrapou no chão, fazendo um barulho horrível e deixando um fedor de pinel queimado. Não vi quando... – Uma pausa, vi vovó fechar os olhos e abrir novamente em uma fração de segundos – quando... ele caiu da moto, apenas ouvi. Primeiro, vi o outro homem, o cara de pele mais escura, sacar outra arma e disparar em direção a moto, ouvi um estrondo e... depois não consegui ver mais nada. Foi tão estranho... parecia um pesadelo, então, como nos pesadelos, comecei a correr sem saber ao certo aonde estava indo. Parei quando achei um telefone público, e disquei para a polícia e para a ambulância. As viaturas passaram por mim um tempo depois, eu as segui. Chegando lá, só encontramos... ele. A moto que ele tanto adorava, a BSA M23 Empire Star, fora roubada, mas quem se importa? O importante era ele, oras! Segui com ele, ainda consciente, na ambulância. Foram os momentos mais... puros da minha vida. Sabe, não pensei muito no que falar, eu sabia que ele estava indo... apenas falei tudo, disse que o amava, foi tão... puro. – ela estremeceu – Então, eu ouvi ele dizer que me ama pela última vez. Dessa vez, quem estremeceu foi eu. Lágrimas caiam através dos óculos de vovó, eu sentia minhas bochechas molhadas, mas não passei a mão para verificar.

– Letícia... – Sussurrou o anjo, senti um alívio ao ouvi-lo novamente.

Em resposta, olhei em sua direção.

Consegui enxergar uma luz no fundo dos seus olhos, como se ele tivesse se lembrado de algo.

- Eu consegui me lembrar! – Gritou ele eufórico de felicidade.

Um grande sorriso cresceu em seu rosto enquanto ele ia em direção a vovó.

– Nina, se pudesse me ouvir agora... – Eu nunca tinha visto os seus olhos brilhando com tanta intensidade!

Então, um gesto do anj... ops, de Frederic fez com que eu arrepiasse mais uma vez.

Como um sopro, sem nenhum sentido físico, ele pareceu beijar o rosto murcho de minha avó. De um modo mais “filho e mãe” ou “irmão e irmã” do que “namorado e namorada”.

Os olhos de vovó, que estavam fechados sobre os óculos se abriram rapidamente, e por um momento, pensei que ela tinha sentindo o beijo dele.

– Vó? – Chamei me aproximando.

O anjo ainda a olhava com uma expressão de quem acabara de reencontrar uma pessoa querida. É, acho que era isso mesmo... um reencontro.

Depois de um tempo calada, ela respondeu com um comentário.

- Estranho... senti um arrepio diferente.

- Nina, eu estou aqui! – Gritava Frederic inutilmente ao lado de minha avó.

Um sentimento estranho tomou conta de mim, trinquei os dentes e depois relaxei novamente. O sentimento era estranho, mas não era desconhecido. Depois de um tempo percebi que era ciúmes. CIÚMES? Por que eu estava com... ciúmes?

Não sei... acho que não estava acostumada a dividir a minha avó, já que sou neta única, quer dizer, agora sei que tenho um irmão, mas minha avó não sabe que Lucas é seu neto, então...

- Acho que foi só... o vento. – Sugeri apontando a janela.

- Não era frio... mas também não era quente, era apenas um arrepio. – Ela pensou por um momento – Ah, acho que me envolvi demais no passado... Bom, alguma dúvida sobre a história?

O tom dela parecia mais forte, mais... feliz. Como se ela tivesse guardando toda aquela há tempos, e depois de desabafar, tivesse esquecido todas as partes ruins dela.

Pensei em tudo, então, fiz uma última pergunta.

- E essa Louis? Ainda está... viva?

Vovó sorriu e então, respondeu.

- Não sei... depois do que aconteceu com Frederic, voltei para o Brasil e nunca mais nos vimos.

- Ah... sinto muito. Quero dizer, por Louis e Frederic.

Ela sorriu mais uma vez, agora, sem ânimo.

- Como Fred dizia... O tempo cura todas as feridas, e enxuga todas as lágrimas.

Respirei fundo. Essa era a frase que o meu anj... Frederic mais usava.

- Oh, já anoiteceu! – Exclamou vovó olhando através da janela. – Tenho que colocar alpiste para os passarinhos agora, já são 18:00.

Dizendo isso, vovó saiu pela enorme porta de vidro, e sumiu pela outra porta.

Suspirei.

- I-N-C-R-Í-V-E-L! – Exclamou o Anjo ainda com a voz maravilhada. – Tudo estava tão... perto! E a medida que eu ouvia a história, ia me lembrando. É como se nada tivesse saído apagado da minha memória, como se eu tivesse tido apenas... uma crise de amnésia!

Eu sorri com a euforia da felicidade dele, mas logo meu sorriso sumiu.

Quanto tempo ele ficaria ali? Até quando eu poderia enxergá-lo? Um dia eu também me esqueceria de tudo, assim como ele se esqueceu da vida? Quer dizer... agora lembrava.

Um vazio tomou conta do meu peito, e não percebi que tinha começado a chorar.

- Oh – disse Frederic ao ver as minhas lágrimas – Me desculpe.

- N-não, não... não tem o que se desculpar. Devo tudo a você, não sei o que teria feito se você não tivesse aqui comigo esse tempo todo.

Ele caminhou – na verdade, mais flutuou do que caminhou – até mim.

- Lê, eu nunca irei me esquecer de você.

- Anjo, eu n...

- Frederic Pierre, ou só Fred, por favor. Agora, finalmente, sei o meu nome.

- Oh sim... Então, Frederic Pierre, – Revirei os olhos enquanto falava o nome dele. Ele riu – quanto tempo vai levar para... você sumir?

O sorriso sumiu do rosto dele.

- Não sei... provavelmente, não voltarei amanhã de manhã.

Uma pontada. Foi isso que eu senti.

Então, esse seria o nosso último dia? Nem mesmo estávamos em Vitória da Conquista para termos uma despedida digna no nosso lugar favorito... Oh não, despedida.

Eu nunca mais o veria.

Nunca mais me afogaria no seu olhar violeta. Nunca mais ouviria a sua voz. Nunca mais teria o meu anjo comigo.

Era difícil aceitar isso.

Agora, as lágrimas transbordavam violentamente pelo meu rosto.

- A-amanhã – Sussurrei – você... não estará mais aqui.

Ele não respondeu. Apenas abaixou os olhos em um gesto de pêsames.

- Não pode ir! – Gritei.

- Letícia...

- Não posso ficar aqui sem você! Eu quero ir junto!

Ele riu sem nenhuma graça, mais parecia um grunhido do que uma risada.

- Não pode ir, Letícia! – Ele falou como se isso fosse óbvio.

E era. A não ser que... eu morresse para salvar alguém.

Senti uma ruga de idéia crescer em meu rosto, sorri.

- E se... eu salvasse alguém?

- Ficou maluca, Letícia? Eu vim aqui para te proteger, e não para te levar embora! Agora as nossas missões foram cumpridas, é hora de... ir.

Não discuti sobre o assunto. Para ser sincera, eu não estava disposta a morrer logo agora que Lucas voltara.

- Mas... Por que tão cedo?

- São as regras, Lê.

Mais lágrimas escorreram do meu rosto. A caixa continuava aberta.

Não me preocupei em colocá-la de novo no lugar, para falar a verdade, nem me lembrei disso.

Chorando, subi as escadas para o quarto. Sem dúvidas, eu não queria que vovó me pegasse chorando na biblioteca. Tive sorte de não topar com ela no caminho.

Frederic atravessou a porta quando eu a bati com força.

- Lê, eu também não quero ir... mas não posso ficar.

Eu abafava o choro no travesseiro enquanto ele falava.

- Olhe só. – Pediu ele.

Eu olhei. Ele estava parado diante do grande espelho na porta do guarda-roupa, porém, eu não via o seu reflexo no espelho.

- Não somos iguais. Você tem que viver sua vida, Letícia, e eu... bem, tenho que fazer o meu papel de anjo.

Fiquei paralisada enquanto olhava a minha imagem no espelho, apenas a minha. Eu podia velo ao meu lado, ainda na frente do espelho, mas ele não refletia nele. Apenas eu estava dentro da moldura cor de cobre do espelho.

Ele tinha razão. Mas eu não queria acreditar, não queria aceitar.

Frederic virou em direção a parede.

Eu sabia que ele ia sumir por ali.

Mas agora, mais do que nunca, eu estava triste por sua partida. Isso porque agora eu sabia que ele não voltaria no dia seguinte, que eu nunca mais veria seus olhos de violeta novamente. Tudo não passaria de uma lembrança...

Eu sabia que não adiantaria, mas pulei da cama em direção a ele com as mãos estendidas, na tentativa de agarrá-lo e prendê-lo para que ele não saísse de perto de mim.

Egoísta? Sim...

Mas eu não estava raciocinando corretamente.

Tentei apertá-lo em um abraço, inútil, claro. Meus braços magros atravessaram a cintura dele como se ele não estivesse ali.

Ele parou a caminhada até a parede. Então, virou-se para mim novamente.

Eu nunca vira lágrimas em seus olhos. Por um momento, não consegui respirar. Agora o olhar violeta dele estava banhado. Aquilo me machucou de um jeito completamente inexplicável... foi quase como no dia em que vi Lucas em coma, deitado naquela cama sem sequer abrir os olhos.

- O que eu vou fazer sem o meu anjo da guarda? – Perguntei enquanto mais lágrimas banhavam meu rosto.

Eu vi, pela primeira vez, uma lágrima escorrer dos olhos dele também. Estendi a mão esperando que ela caísse sob minha palma, mas ela atravessou-a como se a minha mãe não estivesse ali ou como se a lágrima fosse apenas uma ilusão, e não parou no chão. Fiquei imaginando até onde aquela lágrima iria...

- Eu sempre serei o seu anjo da guarda. – disse ele em uma voz melosa e confortante, porém, rouca como se estivesse abafando um soluço – Estarei ai dentro, nunca se esqueça disso.

Dizendo isso ele elevou a mão até o meu coração, porém, não senti a palma dele tocar o meu peito.

Sim, você sempre estará aqui.

Não, nunca o esquecerei.

Era isso que eu queria falar, e pedir que ele também não me esquecesse e me guardasse no coração. Mas não consegui encontrar a minha voz.

O meu anjo repetiu o gesto que fizera com vovó, me dando um beijo sem sentindo na testa.

Eu não senti os lábios dele tocarem a minha testa, mas eu sabia que ele tinha me dado um beijo.

Um beijo de despedida.

Então, ele me olhou pela última vez. Bem dentro dos olhos. Uma última lágrima escorreu pelo rosto dele. Lentamente ele voltou a sua caminhada até a parede... até o fim de tudo.

Eu não podia deixá-lo ir. Eu tinha que impedir!

Em mais um gesto de desespero, sem pensar, me lancei contra a parede ao mesmo tempo em que ele sumia.

Não pude ver mais nada.

Apaguei no exato momento em que senti uma última dor muito forte. A dor era na cabeça.

Eu tinha morrido ou o quê?

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