Personalie

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010


CAP. 14 – Como se fosse o primeiro beijo

De repente, a escuridão foi substituída por um clarão que obrigava os meus olhos a se abrirem, o chão de madeira do quarto da casa de vovó, onde eu – provavelmente – estaria estendida desmaiada – ou morta – também fora substituído por algo mais fofo e até um pouco irritante pelas cócegas leves que fazia na minha bochecha. Grama?

Abri os olhos e confirmei. Era grama.

Onde eu estava?

Atordoada, sentei-me na grama para ver o local de um ângulo diferente.

Estava tonta, mas logo reconheci o lugar.

A pracinha.

O que eu fazia ali?

Eu estava em Boa Vista, num quarto da casa da minha avó, como fora para na pracinha de Vitória da Conquista?

Bom, a explicação que me veio primeiro foi a seguinte:

Eu havia morrido.

Legal, morri tentando inutilmente atravessar uma parede e impedir que o meu Anjo - Frederic Pierre, que agora eu sabia quem era, ou melhor, quem foi – fosse embora.

De quê adiantou?

Nada. O perdi do mesmo jeito.

E agora também havia perdido a minha vida.

Eu só não entendia o que a minha alma fazia na pracinha...

Ah, claro. Era o meu lugar favorito.

Talvez essa fosse a minha recompensa por nunca ter matado nem roubado: passar o resto da minha existência em uma pracinha que agora não tinha mais graça nenhuma.

Não tinha mais graça porque a verdadeira graça dela havia sido arrancada de mim e levada de volta para o mundo do além...

Ei - pensei - Se eu estava morta, e Frederic também, então agora pertencíamos ao mesmo universo, sem nenhuma barreira.

Sorri. Mas não levou muito tempo para o sorriso se apagar do meu rosto.

Olhei para os lados e a única coisa que eu via era a praça perdida num lugar vazio, percebi que as construções em frente a praça haviam desaparecido, e que a única coisa ali era a praça submersa em um clarão branco que parecia sem fim.

Perguntei-me aonde daria o clarão depois da praça.

Bom, se tem uma coisa que eu sabia muito bem, era que eu não devia testar o desconhecido, ainda mais estando sozinha.

Esse era o maior problema: Eu estava sozinha.

Completamente e absolutamente sozinha.

Mortos entram em pânico?

Não sei... Mas eu estava começando a entrar.

Só depois de levantar, percebi que estava com uma roupa estranha.

O vestido de rendas branco com qual eu acordara não se assemelhava nem um pouco com a blusa simples e o jeans com qual eu morrera – que era o que mais indicava agora: morte.

Tudo bem, pelo menos eu não estava de salto...

Corri pela praça a procura de alguém, não importava se fosse conhecido ou não... Só precisava ser alguém.

Depois de três voltas corridas pela praça, desisti.

A essa altura eu já não conseguia mais me manter calma, o pânico da solidão tomava conta de mim.

Sentei em um dos banquinhos com a cabeça entre os joelhos, chorando como um bebê abandonado pela mãe em um dia de chuva.

O que eu iria fazer dali pra frente?

Chorar?

Bem, eu não via outra opção.

- Letícia? – Sussurrou alguém ao meu lado.

Por um momento, achei que fosse ter algum surto de alegria que me levaria a ter um ataque do coração.

Depois, considerei o fato de que a solidão poderia estar me levando a ter alucinações a ponto de ouvir vozes... Bom, eu pensava isso antes de ver os brilhantes olhos de violeta que falavam comigo, mais vivos e reais do que nunca.

- A-anjo! – Exclamei alto, com uma tonelada de felicidade na voz.

Meu anjo, meu Frederic, estava ali, perto, sentado ao meu lado!

Ah! Foi como ver uma luz depois de tanto tempo de escuridão.

- Por que está chorando? – Perguntou ele elevando a mão até o meu cabelo.

Ah! Depois de tanto tempo, finalmente pude sentir o seu toque. Pertencíamos ao mesmo mundo, agora. Não haveria mais barreiras entre nós.

Não percebi que estava de olhos fechados, muito menos que ele já tinha feito a mesma pergunta umas três vezes.

- Letícia, você está bem?

- Anj...

- Frederic – Corrigiu ele.

- C-como...? – Eu tinha tantas perguntas, resolvi organizá-las e começar pela mais importante – Como serão as coisas agora?

Abri os olhos.

Uma ruga confusa apareceu entre os seus olhos.

- Do que você está falando?

A mão dele passou do meu cabelo para o meu rosto, limpando uma última lágrima.

- Quero dizer, como serão as coisas agora que eu morri e...?

Ele riu alto, interrompendo as minhas perguntas.

- Acha mesmo que morreu? – Perguntou ele caindo em mais e mais risos.

- Espera um minuto... Eu não...?

- Claro que não, Letícia!

- Então, como...? – Segurei a mão dele, eu podia senti-la, era macia e quentinha.

Ambos olhares estava em torno de nossas mãos, só depois de um minuto ele respondeu com outra pergunta.

- Lembra que no mundo dos sonhos não existem barreiras?

Mundo dos sonhos. Então era isso: um sonho.

- Ah! – Compreendi abaixando os olhos.

Tudo não passava de um sonho. Coisas da minha cabeça, coisas que eu queria que fossem reais.

- Ei, que carinha triste é essa? – Perguntou ele levantando o meu queixo para me olhar com aqueles penetrantes olhos de violeta.

- Isso não é real. Nada aqui é real. – Sussurrei.

Ele suspirou e me puxou pelas mãos para mais perto dele, eu não hesitei.

Com cuidado, deitei minha cabeça sobre seu peito, ele passou as mãos ao redor de mim, como faz uma mãe quando o filho pequeno chora.

- Às vezes, as coisas não precisam ser reais para serem verdadeiras. – Disse ele.

Sorri um pouco. Ele tinha razão: Nada daquilo era realmente real, mas era verdadeiro. Eu podia sentir isso, e ele também.

- Quanto tempo os sonhos costumam durar? – Perguntei fechando os olhos para aproveitar no escuro das pálpebras o aconchegante abraço dele.

- Eu ouvi dizer que duram o tempo suficiente para serem inesquecíveis.

- E se eu me esquecer disto assim que acordar?

- Bom, eu ficaria muito magoado se você se esquecesse da nossa despedida.

O quê? Despedida?

Levantei para olhar nos seus olhos, rezando para ele dizer que aquilo era apenas uma brincadeira. Eu não estava pronta para mais uma despedida.

- D-despedida? – Perguntei sem acreditar na palavra.

Frederic me afastou e segurou forte as minhas mãos nas dele.

- Eu não posso continuar aqui te iludindo, assim eu estou acabando com a sua vida! É isso que você quer? Acabar com a sua vida?

Um tremor percorreu o meu corpo com a dureza das palavras dele.

- Fred... Você não está acabando com a minha vida, pelo contrário...

- Letícia, tente entender, não posso continuar aqui!

- Por que não?

- As regras...

- A regra principal não é a felicidade? Então, só posso ter a felicidade estando com você!

Ele balançou a cabeça.

- Se eu continuar aqui... Se eu quebrar as regras, vou ser obrigado a... Reencarnar.

- Reencarnar? – Perguntei, senti uma ruga confusa se formar entre os meus olhos.

- Sim. – Ele suspirou – Isso significa voltar a vida, mas também inclui apagar o passado. Ou seja, eu não iria me lembrar mais de nada, nem da minha vida como Frederic, nem da minha morte como Anjo... Nem de você.

- Oh... Desculpe-me, eu não sabia... – Abracei-o novamente.

- Não se preocupe, mesmo não estando com você, estarei sempre no seu coração, e pode ter certeza que sempre estará no meu também.

Agora sim.

Era o fim.

Eu não podia tirar o direito de memória dele mais uma vez, fazendo-o desobedecer as ordens. Sem falar que isso de nada adiantaria, já que de todo o jeito seríamos separados um do outro.

- Então... É o fim, não é? – Perguntei, mesmo já sabendo a resposta.

- Não... Apenas o começo de uma nova história, só que agora não estaremos mais nas mesmas páginas. – Respondeu ele.

Eu ainda estava em seus braços.

Levantei a cabeça em sua direção. Eu precisava ver os seus olhos mais uma vez, agora era certeza de que esse era o nosso último encontro.

Pena que logo agora que eu tinha a oportunidade de tocá-lo, ele tinha que ir... Por que o melhor ficou para a despedida?

Ele estava olhando para mim, por um momento achei que ele já estava esperando que eu erguesse a cabeça na direção dos seus olhos.

Nunca tínhamos ficado tanto tempo nos olhando assim.., Era tão... Diferente.

Enquanto mais os segundos passavam, parecia mais impossível tirar o olhar dali... Tirar os meus olhos dos dele.

Eu já havia ouvido falar uma vez que olhos de violeta são raros e sedutores, mas não era pela cor dos olhos dele que o meu coração estava batendo mais forte.

Era pelo jeito como estávamos envolvidos no mesmo olhar, perdidos no mesmo mundo do qual nem nós mesmo saberíamos responder qual.

Ai meu Deus, porque eu estava daquele jeito... Pude sentir as minhas mãos suarem, meu estomago de repente começou a embrulhar e embrulhar de um jeito estranho, um certo friozinho bateu na minha barriga. Só depois que o meu coração acelerou de vez, eu pude saber o que era isso.

Era amor.

Paixão.

Tudo em um só coração.

Eu não podia estar sentido isso por um anjo, pelo meu Anjo! Mas eu estava, e não sabia como inverter essa situação.

Por longos segundos perguntei-me se ele sentia o mesmo por mim.

Não precisei abrir a boca perguntar.

A resposta veio de imediato, a pergunta estava nos meus olhos, e ele respondeu do jeito mais inesperado que podia...

Com um beijo.

Lentamente ele inclinou seu rosto para mais perto do meu. Sem perceber, fui fechando os olhos – os dele já não estavam mais abertos – devagar, até que eu já estava completamente perdida na escuridão, e ao mesmo tempo, tinha achado o paraíso onde o sol sempre brilha as seis da manhã.

Depois que meus olhos se fecharam, não demorou muito para que eu sentisse os lábios dele nos meus. Macios como pêssegos.

O beijo era carinhoso, quase inocente.

Haha! Agora eu iria para o inferno... Estava beijando um anjo! Será que isso era o mesmo que beijar um padre? Ou seria pior?

Bom, não sei... Só sei que nesse momento apaguei tudo da minha mente, apaguei o mundo ao redor de mim, apaguei os problemas e tudo mais que tinha na minha mente pesada de tanto pensar.

De repente não havia mais nada além de mim e dele, eu nem me lembrava mais onde estávamos... Mas agora eu sabia onde eu queria estar.

Com ele. Era onde eu queria estar.

Senti uma de suas mãos na minha nuca, arrepiando-me.

A essa altura meus braços já estavam presos nele.

O nosso beijo me fez lembrar do meu primeiro... Eu tinha mais ou menos treze anos, estava nervosa, mas não cheguei a sentir nada como agora quando Jack tocou os meus lábios pela primeira vez. Sim, eu tive o azar de dar o meu primeiro beijo com Jack, o garoto do qual eu mais tenho nojo agora. Mas naquela época eu gostava dele, não era amor, mas ela uma paixão daquelas bem agudas.

Me fez lembrar do meu primeiro beijo porque, assim como ele, esse nosso beijo seria inesquecível... Só que além de inesquecível, seria especial – o que o meu primeiro não foi.

Não sei dizer quanto tempo ficamos ali... No nosso mundo, presos um nos lábios do outro, aproveitando o gosto do amor.

Na primeira pausa, tentei dizer que eu o amava, mas antes que as palavras saíssem da minha boca, ele colocou o dedo nos meus lábios pedindo silêncio, depois, substituindo o dedo pelos seus lábios novamente.

Não reclamei.

Voltei a beijá-lo com ainda mais intensidade.

Na segunda pausa, finalmente consegui começar a falar:

- Frederic... Eu... – Meu Deus, como era difícil dizer “eu te amo”!

- Eu também te amo. – Sussurrou ele olhando no fundo dos meus olhos, não era pra menos que ele tinha decifrado a minha frase.

- Não posso viver sem você. – Completei.

- Não posso mais viver de qualquer forma, mas não posso continuar sem você. – Disse ele em um sorriso sem felicidade.

Dessa vez, eu iniciei o beijo.

... Até que fui obrigada a parar.

Algo estava me afastando. Eu não queria ir, mas era inevitável.

A praça não estava mais ali, tudo estava escuro novamente, eu só via Frederic e seus olhos brilhando em meio a escuridão.

- Frederic! – Gritei quando algo me puxava para longe dele.

- Letícia! – Ele gritava por mim também, de mãos estendidas.

Eu tentei pegar a mão dele, mas ela já era invisível ao meu toque.

- Você está acordando. – Disse ele por fim, agora mais longe.

- Eu não quero! Eu quero ficar aqui!

- Letícia! – Alguém gritou, não era Frederic.

- Quem está me chamando? – Perguntei olhando para os lados, sem ver ninguém além do meu Anjo que ficava cada vez mais distante.

- É o mundo real, Lê. Agora você tem que ir... Não se esqueça de que eu amo você!

- Frederic, eu também te amo. – Consegui dizer pela primeira vez.

Eu ainda estava de mãos estendidas para ele.

Ele já desistira, sabia que era inútil.

A última coisa que vi, foi ele jogando um beijo para mim. Quase não consegui ouvi a sua última frase, mas sei que era algo como “Me tenha no seu coração.”

- FREDERIC! – Gritei.

Inutilmente.

Ele não estava mais ali.

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